12 agosto 2013

Sociologia

Ementa:

- As Instituições Sociais;- A Ideologia Humana e o Poder Político;- A Estrutura das Sociedades Medievais e Contemporâneas.

Sugestão de conteúdo...

O INÍCIO DA SOCIOLOGIA

As pessoas não fizeram sempre as perguntas formuladas pela sociologia, nem coletaram dados sobre a sociedade como faz a sociologia atualmente. A sociologia, na verdade, surgiu mais tarde na comunidade acadêmica, sendo uma das ciências mais jovens. A maioria dos sociólogos julga conveniente identificar as origens da sociologia no início do século XIX, com a obra do filósofo francês Augusto Comte (1798-1857), o primeiro a empregar o termo sociologia". Foi ele quem definiu sociologia como a "ciência da sociedade". Assim corno todas as perspectivas, também chamadas de visões sociais de mundo ou teorias, o desenvolvimento da sociologia ligou-se às condições sociais. Afinal, perspectivas são maneiras de definir o que está "lá fora", e nem todas as sociedades incentivam seus membros a examinar a sociedade com objetividade e atenção. A Europa do século XIX, porém, estava madura para a auto-análise. Várias evoluções concorreram para gerar o clima perfeito para que crescesse e florescesse o espírito questionador. Examinemos brevemente esses desenvolvimentos.

A ciência foi uma inspiração...

Comte definiu a sociologia como a ciência da sociedade, e de fato foi o desenvolvimento da ciência que constituiu uma importante inspiração para os primeiros sociólogos. A sociologia evoluiu de um desejo nascido em alguns intelectuais de aplicar as técnicas da ciência ao estudo da sociedade. Antes dos sociólogos existiram filósofos sociais, historiadores, cientistas políticos, economistas e pensadores religiosos que examinaram a sociedade ou alguns de seus aspectos. A maioria estudou primordialmente o mundo político, e a maior parte de seus esforços visava ao mesmo tempo entender a sociedade humana e procurar saber o que ela deveria ser. Com freqüência a meta não era a investigação objetiva. Os sociólogos, porém, seguiram o conselho dos pensadores iluministas do século XVIII: podemos entender as leis da sociedade humana aplicando os instrumentos da ciência. A sociologia, desde o início, tomou emprestada das ciências naturais as ferramentas que estavam sendo usadas para gerar novas descobertas a respeito das estrelas, da Terra e do corpo humano. O universo compõe-se de leis naturais; portanto, também a sociedade tem de ser governada por essas leis, e a sociologia haveria de descobri-las aplicando procedimentos científicos. Seu objetivo seria definir o que a sociedade é, e não dizer o que ela deveria ser.

O DESENVOLVIMENTO SOCIOLOGIA

Montesquieu, Saint-Simon, Comte e muitos outros foram os verdadeiros "pioneiros" da sociologia. Entretanto, no século XIX e início do século XX DC, quatro pensadores europeus tiveram especial importância para a disciplina e, juntos, podem ser considerados "os sociólogos clássicos": Karl Marx, Max Weber, Emile Durkheim e Georg Simmel. Até hoje sua influência se faz sentir em todo o mundo, eles são modelos para os sociólogos, inspiram suas idéias e estudos, e suas definições de conceitos ainda constituem pontos de partida Em 1920 todos os quatro já haviam morrido, mas, juntos, legaram uma forte tradição sociológica às universidades européias. A disciplina da sociologia chegou aos Estados Unidos na virada do século XX e rapidamente assumiu uma feição tipicamente americana, imbuída de um espírito de reforma e não se distinguindo, de início, do trabalho de assistência social. Esse espírito de reforma sempre foi importante para muitos sociólogos americanos: um incentivo à pesquisa para alguns, um tema de debate para outros. A sociologia americana recebeu forte influência do pragmatismo ("Se isso vale a pena, mostre-me como usar"), e desde o princípio viu-se às voltas com o problema de como entender a sociedade de maneira crítica e objetiva, mas ao mesmo tempo tentar reformá-la. Como uma disciplina reformadora prática ela continua sendo uma variação, mas o tema dominante desde aqueles primeiros tempos tem sido a compreensão e a explicação científicas.
 Entre 1900 e 1920 os sociólogos cada vez mais foram deixando de lado as reformas a fim de ganhar respeitabilidade na comunidade universitária e científica Empenharam-se para fazer com que a sociologia se tornasse uma ciência social legítima nas grandes universidades, especialmente no centro-oeste e no leste dos Estados Unidos. Após 1920 a sociologia ingressou em um período de trabalhos fundamentais nas áreas de teoria e pesquisa científica. Foi uma tentativa de construir uma disciplina de especialização, estudos científicos acumulados, idéias corroboradas por evidências. Ainda nessa época desenvolveu-se nos Estados Unidos uma importante escola (ou perspectiva) da sociologia, conhecida como funcionalismo. Até a década de 1960, o funcionalismo foi bastante influente, mas desde então essa influência vem declinando. Os membros dessa escola ocuparam-se dos mesmos temas de Durkheim — temas que enfocam problemas de ordem social. Os funcionalistas querem saber como funciona a sociedade, como a ordem é estabelecida, como as diversas partes da sociedade — família, educação, religião, direito etc. — atuam entre si. Enfatizam-se aqui as instituições, os padrões da sociedade, a organização social e a ordem social. É uma macrossociologia. O funcionalismo muito contribuiu para o estudo da organização social, mas nos últimos 30 anos vêm perdendo importância. A partir da década de 1960, a sociologia tomou vários rumos. Primeiro, a comunidade científica tornou-se mais especializada, fundamentando-se nos resultados de estudos acumulados nas décadas anteriores. Novas idéias e estudos empíricos dividiram a disciplina em campos distintos: sociologia da família, papel dos sexos, religião, saúde, burocracia, desvios, Forças Armadas, governo, mobilidade social etc. Esse é um caminho previsível para qualquer ciência, e temos todas as razões para crer que assim prosseguirá. Segundo, emergiu uma sociologia do conflito, preocupada menos com a ciência e mais com as questões sociais, especialmente as ligadas à desigualdade: classe, pobreza, discriminação sexual, racismo, poder das grandes empresas, crimes de colarinho-branco, conflito social. Karl Marx, pensador alemão oitocentista, e C. Wright Mills, sociólogo americano de meados do século XX, foram muito influentes no desenvolvimento dessa escola. De início, chamaram-na sociologia radical, mas na década de 1980 ela se tornou clara-mente uma perspectiva das mais importantes, adquiriu maior abrangência e associou-se a muitos que são menos radicais. Assim como os funcionalistas, os sociólogos do conflito tendem a ser macrossociólogos. A sociologia do conflito às vezes é denominada sociologia crítica: levanta importantes questões sobre a sociedade e a direção da sociologia — nossa lealdade à ciência, por exemplo, nossa pretensão à objetividade e nossa recusa a trabalhar em prol da mudança. Essa sociologia do conflito trouxe à luz diversas idéias e estudos extraordinários e se tornou uma alternativa vital aos especialistas científicos e funcionalistas.

A sociologia do conflito tende a ser macrossociológica e a enfocar a natureza da sociedade. Os especialistas científicos concentram-se nas instituições sociais, muitas vezes no nível macro, às vezes no nível micro É interessante notar que em fins da década de 1970 e início da de 1980 emergiu uma terceira tendência: um interesse crescente pela microssociologia   interação face a face, socialização, comunicação, criação e manutenção de padrões sociais em pequenos grupos, apresentação do eu (ser a outros em diversas situações, linguagem, identidade, papéis etc. Várias escolas adotaram urna abordagem microssociológica. Historicamente, a mais importante dessas abordagens denomina-se "interacionismo simbólico", porém vêm ganhando cada vez mais importância os "etnometodologistas", os "sociólogos dramaturgos", os fenomenologistas". Agrupando-os, podemos chamá-los de uma escola: o interacionismo. Especialização, sociologia do conflito e interacionismo são três importantes tendências sociológicas. Essas tendências (e outras demasiado numerosas para as descrevermos aqui) favorecem o debate e o estímulo na disciplina. A sociologia ,compõe-se de pessoas que discordam honesta e seriamente umas das outras a respeito de muitas questões básicas e da direção que se deve tomar. Discordamos quanto à natureza da ciência e da sociedade; quanto ao enfoque e aos conceitos a estudar; quanto ao grau de desigualdade na sociedade, às razões da mudança social, ao grau em que os seres humanos são livres na sociedade e aos problemas sociais que são os mais graves. Alguns defendem Marx, outros consideram Max Weber o sociólogo modelo. Outros julgam Durkheim ou George Herbert Mead mais úteis, e outros ainda não estão interessados em "grandes" idéias enquanto se dedicam a estudos empíricos. o instigante na sociologia é ser ela tão repleta de controvérsia e autocrítica. Idéias e estudos nunca são aceitos sem questionamento, pois sempre há muitos de nós de prontidão para criticar. Assim como em toda ciência, a discordância e a crítica são necessárias para garantir que o conhecimento acumulado seja correto.
Obviamente, para aqueles que trabalham na área da sociologia ela é urna disciplina muito útil. Para muitos ela é uma paixão, impelindo a aplicar suas idéias a cada aspecto da existência humana. Para os que a observam de fora, a sociologia muitas vezes é mal compreendida. A maioria das pessoas na verdade não entende o significado de sociedade e sua importância para tudo o que fazemos, somos e pensamos. É mais fácil e mais concreto entender os seres humanos de uma perspectiva biológica ou psicológica.

O desenvolvimento da sociologia no Brasil obedeceu às condições de desenvolvimento do capitalismo e à dinâmica própria de inserção do país na ordem capitalista mundial. Nesse sentido, a sociologia brasileira surge na década de 1930, quando do crescimento da burguesia, do incremento da industrialização e da centralização do poder com o golpe de 1937, que instaurou o Estado Novo no Brasil. Em 1933, é criada a Escola Livre de Sociologia e Política, em São Paulo, onde a sociologia passa a ser ensinada em nível universitário. Os estudos da Escola Livre de Sociologia e Política são de orientação americana. A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo surge em 1934, sob influência da sociologia francesa. Dela sairão importantes nomes da sociologia brasileira. Como um dos mais importantes sociólogos brasileiros podemos destacar Florestan Fernandes fundador da sociologia crítica no Brasil. Procurou sempre refletir sobre a realidade brasileira e sobre o papel da sociologia diante das desigualdades, sociais. Outro sociólogo que muito se tem destacado em âmbito nacional e internacional é Fernando Henrique Cardoso. (N.R.T.)

QUESTÕES DE SOCIOLOGIA

    Caracterize a Sociologia enquanto ciência, salientando sua origem e objetivos.

A Sociologia como ciência, surge no século XIX, no momento de desagregação da sociedade feudal e consolidação do capitalismo, para resolver questões sociais, foca o coletivo, analisa o homem no meio social. Objetiva o progresso e busca pelo estágio positivo.

    Qual a relação entre o Humanismo e o Ceticismo do século XIX com a Sociologia?

Humanismo x Ceticismo século XIX - O Humanismo é uma doutrina antropocêntrica, ou seja, centrada nos valores humanos, de caráter individualista, independente de comprovações cientificas para este fato. Porém, no século XIX, ocorreu a consolidação da Ciência. Até o Renascimento, as explicações aceitas de qualquer fato eram dadas pela Igreja. O ceticismo é adotado como postura filosófica, usada para avaliações gerais com base em método cientifico. Então, aplica-se o conhecimento empírico, com a ideia de que, tudo que foge a experimentação e comprovação não existe.

    Qual a importância de August Comte para a Sociologia?

A maior importância de August Comte foi adoção do método científico como base para a organização política da sociedade industrial moderna. Segundo ele, toda e qualquer sociedade evoluía de um estágio Teológico, onde havia o predomínio de entidades divinas, seguindo para o estágio da Metafísica, que é o momento de questionamento até chegar à meta universal do Positivo, tendo a Europa como meta de civilização e modernidade. Também desenvolveu um esquema sociológico positivista e lançou a ideia de que toda vida humana teria atravessado as mesmas fases histórica.

    Defina a Religião da Humanidade desenvolvida por Comte.

A Religião da Humanidade desenvolvida por August Comte era um sistema em que buscava estabelecer uma completa espiritualidade humana sem elementos sobrenaturais. Seu dogma baseia - se na ciência. Nela, a substituição de Deus por uma humanidade racional e evoluída.

    Caracterize:

a – Positivismo - Corrente filosófica que busca a interpretação para fatos, inclui e evoca a razão. É empirista. As avaliações cientificas devem estar rigorosamente embasada em experiências.

b – Evolucionismo - Homem é resultado final de uma longa evolução. Parte do pressuposto de quanto mais evoluído é, melhor.

c – Mecanicismo - É modo como funciona o organismo humano, visto como uma máquina que pensa.

d – Liberalismo - Teoria econômica do fim do Iluminismo que se opõe ao intervencionismo do estado na produção e distribuição de riquezas.

e – Organicismo - Ideia de que tudo funciona como um sistema. Se um segmento social não funciona bem, os outros sistemas não vão conseguir trabalhar em harmonia.

f – Cientificismo - Dita como grande solução da humanidade, nela a ciência é a única detentora da verdade. O que não fosse experimentado, não poderia ser mencionado.

g – Eurocentrismo - Europa como modelo de civilização e modernidade, exemplo a ser seguido, tornou-se meta universal.

h – Darwinismo - Teoria da evolução que se baseia na seleção natural.

I - Darwinismo Social - Teoria social baseada na teoria da evolução em que apenas os organismos mais aptos sobrevivem.

    Quem foi E. Durkheim e quais suas contribuições para a Sociologia?

Durkheim foi fundador da Sociologia Moderna e destacou - se por contribuir com suas reflexões pelo estudo sobre suicídio; afirmação de que o homem tem consciência distinta, tanto coletiva quanto social; sua concepção de que a sociedade é estruturada pela divisão do trabalho social; a tese de que nem todo fato dito social é fato social, porque há fatos normal e patológico.

    Segundo E. Durkheim defina:

a - Fato social - Maneiras de agir, de pensar e de sentir, fixa ou não, exteriores ao individuo dotadas de um poder. É uma norma coletiva com independência e poder de coerção sobre o indivíduo, que direcionam a vida do mesmo. Não são simples casos isolados. Depende de proporções estatísticas, portanto envolve a coletividade.

b – Sociedade - É mais que a soma dos indivíduos que dela fazem parte, segundo Durkheim, a sociedade é um conjunto de normas de ação, pensamento e sentimento que não existem apenas na consciência individual.

c – Coisa - É o objeto de estudo. Fatos sociais são considerados desta forma e devem ser vistos com imparcialidade pelo sujeito que o estuda. Não se deve envolver, emitindo opiniões particulares.

d - Método sociológico - Considerar os fatos sociais como ‘coisa’, ou seja, analisar os fatos com imparcialidade, importância atribuída a educação

e - Representações coletivas - Atitudes comuns de uma coletividade em determinada época.

f - Tipos de solidariedade - Solidariedade Mecânica, presente em sociedades primitivas, onde a consciência coletiva é compartilhada pela maioria dos membros que dela fazem parte e na Solidariedade Orgânica, presente em sociedades mais complexas, típica de sociedades capitalistas, caracterizada pela divisão do trabalho social.

g - Consciência coletiva - Imposta pela sociedade, estabelece regras de conduta.

h – Moral - É o que norteia para o certo e para o errado.

i - Coerção social - Ato de induzir, pressionar ou copelir alguém a fazer algo à força ou por intimidação ou por ameaça. Violência simbólica.

j - Socialização metódica - Constitui a educação, modelar o indivíduo para que possa se adequar a sociedade.

    Segundo E. Durkheim:

a - Apresente a relação entre consciência coletiva e consciência individual

Consciência Coletiva x Consciência Individual – Consciência coletiva estabelece normas (certo e errado), limites, direitos e deveres, enquanto a consciência individual detém ao indivíduo o livre-arbítrio.

b - Apresente a distinção entre maneiras de agir e maneiras de ser

Maneira de agir x Maneira de ser – As regras morais devem ser seguidas pelos indivíduos, sua maneira de ser e de agir e podem ser coagidos pelo fato social, a reações inversas exercidas pela falta de moral ou por questões comportamentais.

c - Descreva o papel do sociólogo - Compreender a sociedade a fim de manter a ordem vigente.

d - Demonstre o objetivo da instrução pública

Objetivo da instrução pública – O indivíduo construa sua consciência social, abstraindo-se do egoísmo e do materialismo.

e - Descreva como se analisa o suicídio - Os indivíduos que não mantém o elo de união, comunicação e afetividade em harmonia têm probabilidade de cometerem suicídio.

f - Diferencie a moralidade e a anomia –

Moralidade – É uma qualidade das ações humanas, que segue regras sociais, princípios e valores.

Anomia – Falta de coesão e ordem, ausência de normas que regulam o comportamento do indivíduo. É um modo de afirmar que a sociedade encontrava-se socialmente doente.

g - Demonstre a importância da moral individualista e da religião para a sociedade.

Importância da moral individualista e da religião para a sociedade – A importância da moral individualista está na especialização de funções produtivas na divisão social do trabalho e a importância da religião se dá, pela inter-relação entre a cerimônia e ideia de festa, ocorre aproximação dos indivíduos, união e coletividade.

h - Apresente o enfoque de Durkheim sobre a religião.

Religião – Como uma criação coletiva e não social. Em sociedades mais simples a religião é uma forma de organização social.

9 . Quem foi Max Weber e qual a sua definição para a Sociologia?

Max Weber foi fundador do estudo moderno da Sociologia, estudava a sociedade com especificidade, analisando sua formação histórica, como a mesma se solidifica, ou seja, buscava compreender a sociedade dentro de sua própria história. Quanto a sua definição de sociologia, é uma ciência que busca compreender a ação social, entender o indivíduo para posteriormente compreender a sociedade.

10. Explique a relação Weber X Durkheim referente ao individuo e a sociedade.

Weber - Parte do indivíduo para entender o coletivo. Da conduta para a ação social.

Durkheim – Do coletivo para o indivíduo.

11. Segundo a teoria de Max Weber, conceitue:

a – Poder: Capacidade de impor a sua vontade, sendo que o poder não está na pessoa, está na sua relação social.

b – Dominação: Ceder à vontade, probabilidade de encontrar obediência a uma ordem.

c – Legitimidade: Reconhecimento do poder através da obediência.

d – Carisma: Qualidade pessoal que exerce poder sobre o outro.

12. Diferencie os tipos puros de dominação legítima.

Dominação Legal – Dominação através de lei, estatuto. Exercida através de lei, caso não a obedeça, há punição.

Dominação Tradicional - Reconhecimento de posturas sociais diferenciadas, tradicionalista, como por exemplo, a obediência de filho para pai.

Dominação carismática – Ceder à vontade do outro em virtude de relacionamento social. Exemplo, relação de amizade, entre cônjuges ou namorados.

13. Explique o quadro a seguir:

O quadro explicita a ideia de Marx Weber:

Quanto mais carismática a relação, mais intensa ela é.

Quanto mais vulnerável a relação, menos tem probabilidade de durar.

Quanto mais burocrático, menos intenso é, porém mais durável.

14. Quem foi Karl Marx? E qual a sua contribuição para a sociologia?

Karl Marx foi um filósofo alemão que desenvolveu a teoria materialista dialético, propôs ampla transformação política, econômica e social. Ele criticava o capitalismo e liberalismo, pois estes geram livre consumo, consequentemente livre concorrência, que gera consumo desenfreado e resulta em alienação. Foi o idealizador de uma sociedade com distribuição de renda justa e equilibrada.

15. Conceitue a dialética diferenciando a dialética hegeliana da dialética marxista.

Dialética Hegeliana é idealista e onde tudo se desenvolve fundindo afirmação e negação do que se propõe, e é um método de três etapas: Tese + Antítese = Síntese, que quer dizer que parte de uma afirmação, exemplo “ser”, como conceito generalizado (tese) que em seguida é negada “ser sem propósito é o mesmo que não ser” (antítese) e por fim, essa contradição somada a afirmação, adquire o conceito de vir a ser ou tornar-se, (síntese). Dialética Marxista é um método de análise da realidade, não é apenas pensamento. É a realidade que transformamos em ação, nega a existência da alma, de outra vida e de Deus e a existência de um mundo ideal, existe apenas o aqui e o agora.

16. Caracterize o Socialismo proposto por Marx, diferenciando-o do Socialismo Utópico.

O Socialismo de Marx trazia a proposta de transformação política, econômica e social, é um modo de organização que visava queda da burguesia e ascensão da classe trabalhadora, enquanto o Socialismo Utópico acreditava no surgimento de uma sociedade ideal sem a revolução proletária, de modo pacífico e iniciada por elites.

17. Conceitue segundo a teoria marxista:

a – Materialismo - é a corrente filosófica do ser e pensar. A matéria é um dado primário e a consciência é o reflexo da relação do indivíduo com o mundo.

b - Materialismo histórico - é a busca pela compreensão da história das sociedades humanas

c - Base / superestrutura – Base é o conjunto das relações de produção que correspondem a um período determinado do desenvolvimento das forças produtivas. Superestrutura é constituída pelas instituições jurídicas e políticas e por determinadas forças de consciência social.

d - Luta de classes - força motriz do desenvolvimento de todas as formações econômicas em classes divergentes.

e - Mais-valia - é a diferença entre o valor produzido pelo trabalho e o salário pago pelo trabalhador. É o valor a mais que o indivíduo trabalha e não recebe por ele.

18. Segundo David Lyon (1996:18), após a industrialização as pessoas passaram a experimentar novos níveis de relacionamentos. Como Durkheim, Weber e Marx analisariam este posicionamento?

Durkheim – Individualização.

Weber – Relações impessoais e sistematizadas.

Marx – Relações mercantis, pois transformou os relacionamentos em simples troca.

19. Explique segundo cada teoria:

    “Por intermédio da instrução pública, consegue-se que o indivíduo, construindo sua consciência comum, social, supere a si mesmo, libertando-se de visões puramente egoístas e interesses materiais imediatistas”. (ÉMILE DURKHEIM)

Isso significa a implementação de uma consciência coletiva, onde ele visa não apenas seus interesses individuais, mas visa o todo.

    “O suicídio do indivíduo tem a sua causa básica no âmbito da sociedade, ou seja, origina-se no meio que o rodeia”. (ÉMILE DURKHEIM)

A causa não está no individuo em si, e sim no coletivo. Pois algo da vida coletiva afetou diretamente a vida social, e quando as proporções são drásticas, alguns indivíduos não suportam. Pelo fato de considerar a coletividade, diz que a causa real para o suicídio está no social.

    “A educação é a ação exercida pelas gerações adultas, sobre as gerações que não se encontrem ainda preparadas para a vida social; tem por objetivo suscitar e desenvolver, na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política no conjunto, e pelo meio especial a que a criança, particularmente se destina” (Durkheim apud Canela, 2001:64).

A visão de Durkheim quanto à educação, tendo a escola como instituição modeladora que adequa o indivíduo às normas de conduta social e os orienta sobre moralidade, evitando assim que o mesmo venha a subverter a ordem.

    “A [dominação] carismática derruba o passado (dentro de seu âmbito) e, neste sentido é especificamente revolucionária. Esta não conhece a apropriação do poder senhorial ao modo de uma propriedade de bens, seja pelo senhor seja por poderes estamentais. Só é ‘legítima’ enquanto e na medida em que ‘vale’ isto é, encontra reconhecimento, o carisma pessoal, em virtude de provas; e os homens de confiança, discípulos ou sequazes só lhe são ‘úteis’ enquanto tem vigência sua confirmação carismática” (WEBER: 1991, p.160).

A dominação carismática, é ceder à vontade do outro com intuito de não entristecê-lo, é uma forma de reconhecer a importância do outro e difere de obediência. Também difere de dominação legal, imposta por lei, que caso não seja obedecida o indivíduo está sujeito a punição. No que se refere em obediência a um líder, o indivíduo atribui-lhe poderes por seu carisma, a exemplo de políticos, escolhidos pela conquista da confiança dos indivíduos que os elegem.

    “A dialética não é só pensamento: é pensamento e realidade a um só tempo”. (K. MARX)

A dialética significa dois elementos contrários, essa contradição é um benefício. A dialética Hegeliana e a dialética do Materialismo creem que realidade e pensamento são sinônimos e que, as leis do pensamento são as leis da realidade.

    "A existência precede a essência “(K. MARX)

Essa é a ideia central do Existencialismo. Marx critica o modo de como se busca compreender o que é o homem. A essência do homem é algo que ele mesmo constrói, é sua história, pois o homem é produto do meio em que vive.

    “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado ”. (K. MARX)

É necessário que o homem se adeque às regras sociais para que possa viver em harmonia, sem coerção. Pois já a preceitos determinados para que haja organização social, visando a coletividade. Porque sem coesão é anarquia, e não sociedade. Portanto, a falta de autonomia para agir de acordo com sua vontade é justificável, pois é preciso que haja princípios em vigor, são eles: Coesão, Organização, Normatização e Unidade.

20. É possível se afirmar que todas as categorias sociológicas são inevitavelmente “carregadas de valores”? Por quê?

Sim, porque apesar de serem representadas por minorias, fazem parte do contexto social e também tem sua importância. Pois qualquer categoria sociológica, apenas pelo fato de existir ela pode afetar de modo direto ou indireto na coletividade.

21. A Sociologia se desenvolveu como uma resposta à desinstalação da vida social no século XIX. Mas por que razão ela assumiu as formas especificas que nós vivemos hoje e como ela alcançou um status tão importante?

A Sociologia surgiu como resposta a um desafio da modernidade, num momento de mudanças com o surgimento do capitalismo, sua existência tem sido de grande valia para a sociedade atual. A sociedade atual tem características predominantemente consumista devido ao capitalismo, que é o expresso incentivo ao consumo. Através da Sociologia pode-se avaliar, conhecer e compreender ideias, atitudes e enfoques distintos, e desse modo compreender tudo o que nos afeta e suas significâncias no todo.

A Ideologia Humana e o Poder Político

Há muito a história tem nos apresentado e demonstrado que o poder político tem como base a alienação da classe proletária em detrimento da manutenção da estrutura de mercado de capital, base das sociedades capitalistas, o que nos leva a pensar como poderia, tal poder, ter força suficiente para manter essa classe proletária alienada de tal forma que os fazem concordar em apenas sobreviver num contexto que lhes é adverso.

IDEOLOGIA E PODER POLÍTICO NO SISTEMA CAPITALISTA

Num levantamento racional e evolutivo da história, é viável e próprio que sejamos induzidos a pensar que qualquer movimento de socialização do indivíduo ao seio de um grupo qualquer é inconscientemente atravessada por constrangimentos formais e informais, estruturais e funcionais que decorrem da própria condição humana, considerando este como um ser intrinsecamente biológico e social. Desta forma, cabe ressaltar o que Hobbes preconiza:

"Poderá parecer estranho a alguém que não tenha considerado bem estas coisas que a natureza tenha assim dissociado os homens, tornando-os capazes de atacar-se e destruir-se uns aos outros. E poderá portanto talvez desejar, não confiando nesta inferência, feita a partir das paixões, que a mesma seja confirmada pela experiência. Que seja portanto ele a considerar-se a si mesmo, que quando empreende uma viagem se arma e procura ir bem acompanhado; que quando vai dormir fecha suas portas; que mesmo quando está em casa tranca seus cofres; e isto mesmo sabendo que existem leis e funcionários públicos armados, prontos a vingar qualquer injúria que lhe possa ser feita. Que opinião tem ele de seus compatriotas, ao viajar armado; de seus concidadãos, ao fechar suas portas; e de seus filhos e servidores, quando tranca seus cofres? Não significa isso acusar tanto a humanidade com seus atos como eu o faço com minhas palavras? Mas nenhum de nós acusa com isso a natureza humana. Os desejos e outras paixões do homem não são em si mesmos um pecado. Nem tampouco o são as ações que derivam dessas paixões, até ao momento em que se tome conhecimento de uma lei que as proíba." (1)

Do momento em que os indivíduos e grupos foram constrangidos a decidir da construção de modelos de sociedades contrastantes, os problemas inerentes à prática do contrato social e da socialização do poder levaram-nos aos dilemas introduzidos por Thomas Hobbes(2) em relação à necessidade histórica do Estado.

Para Hobbes, os indivíduos, e isso caracteriza a condição humana, são motivados por pensamentos e paixões. Em condições idênticas, o homem que vislumbre o intento de suas paixões e pensamentos poderá, assim, conhecer os pensamentos e paixões de outro homem qualquer. Então, o homem de Hobbes encontra-se em um estado de guerra constante, devido a uma desconfiança generalizada e antecipação das possíveis ações do outro. (3)

A forma encontrada por Hobbes de acabar com essa desconfiança generalizada e destituir o estado de guerra foi formalizar (daí dizer que Hobbes é um filósofo contratualista), através de um pacto de cada homem com todos os homens, um poder comum capaz de defender o corpo unitário das invasões estrangeiras e das injúrias uns dos outros. Para tanto, o detentor deste poder político poderia utilizar a força e os recursos de todos para assegurar-lhes paz e segurança. (4)

Desde então, quer consideremos as características da revolução francesa, quer estudemos as contingências do processo de industrialização e de urbanização das sociedades, a política(5) tornou-se uma realidade endêmica nas formas de governo do Estado-Nação e dos outros poderes institucionais locais ou regionais. (6)

Na medida em que a socialização do poder, como base do fenômeno político, não pode ser articulada diretamente com suas traduções executiva, legislativa e jurídica, para a política revelar-se eficiente estrategicamente e taticamente é que sempre foi veiculada às dimensões econômica, social e cultural. Concernente ao exposto, podemos ratificar com o que bem demonstra Alves:

"A visibilidade ostensiva do Estado, mediante a operação e funcionamento de suas instituições e aparelhos, é precisamente o que impede ao senso comum a compreensão da exata dimensão de suas relações subjacentes com a sociedade civil. Sua projeção concreta no mundo dos fatos cotidianos não permite mostrá-lo em toda a sua transparência , motivo pelo qual ele aparece não como um conjunto de relações de dominação, enraizado por toda a sociedade, mas como um fato singular sobreposto às relações sociais, como um ''''''''''''''''fetiche'''''''''''''''' com poder próprio e transcendente. Na medida em que o estado é confundido com apenas uma parte de sua manifestação, ele é ''''''''''''''''coisificado'''''''''''''''' na materialidade imediata de sua organização burocrática visível, ao mesmo tempo que dissimula as relações subliminares de que é originário. Desse fenômeno resultam, como consequência, de um lado, a ilusão de que as relações privadas emergentes da comunidade civil são apenas de caráter econômico ou sociocultural, e, de outro, a aparência de que a ação estatal incide sempre a partir do exterior, com esporádica intervenção no âmago daquelas relações. O Estado e a sociedade, o público e o privado, aparecem cindidos, como se fossem estranhos um ao outro; esse corte torna o Estado opaco e recria, na permanência de sua ilusão, o obstáculo destinado a ocultar as conexões reais da exploração econômica e da sujeição política." (7)

Assim, como a revolução industrial inglesa formaliza as bases econômicas, sociais e culturais do capitalismo, a revolução francesa remete à sociedade o contrato social fundamentado na ação política (poder político) e no Estado. Neste contexto, a luta pelo poder político foi configurado por tentativas de instaurar modelos ideológicos diferenciados: liberal, socialdemocrata, republicano, monárquico, etc. Assim, apareceram modelos contrastantes de sociedade axiologicamente instituídos na ação política dos partidos socialistas e comunistas que se opunham à exploração capitalista.(8)

Juntamente com a generalização e constância do espaço-tempo(9), estes modelos de socialização do poder político foram, cada qual a seu modo, adquirindo legitimidade e institucionalização. Todo este processo, no entanto, tem por objetivo pregar a desintegração do fundamento da política como vocação ou profissão adquiridas no contexto da evolução da racionalidade instrumental do capitalismo.

Como base da crise política, há que referir a própria essência da legitimação e institucionalização da política como vocação ou profissão que permitiu que estas funções evoluíssem no sentido de uma maior autonomização e centralização do poder e da autoridade política. (10)

Assim sendo, atualmente, são cada vez mais exigidas competências e qualificações a todos que pretendam adentrar na política, quer exerçam a sua profissão nos partidos, quer exerçam nos diferentes níveis de governo e do exercício do poder. Por isso, a forma, desses "novos" profissionais, de realizar a política não se restringe ao mero exercício do poder político. Paulatinamente, suas funções evoluíram no sentido de exigências profissionais corporizadas, ao ponto de formar uma nova classe sócio profissional dos quais emergem interesses, objetivos e estratégias muito específicos. O que nos leva a entender o que Ferreira expõe:

"[...] o Estado e as suas instituições, os partidos e sindicatos são demasiadamente ineficientes e burocráticos . O controlo social no sentido normativo torna-se muito difícil, porque os processos de socialização e de sociabilidade são demasiadamente formais e impessoais . A sua legitimidade diminui progressivamente. O Estado, para subsistir, desenvolve os seus tentáculos totalitários sobre os indivíduos e grupos e limita-se a aumentar o número de polícias, prisões e hospitais psiquiátricos . Os partidos e os sindicatos descaracterizam-se, branqueando as suas ideologias, os seus princípios e as suas práticas. Neste caso, diminui drasticamente a militância política e as taxas de sindicalização. Para sobreviverem precisam da ajuda do Estado, caso contrário soçobram." (11)

Assim, surgem novas formas de disfunções sociais inerentes desta evolução sócio-política: corrupção, clientelismo e situações anômalas do exercício político em relação a escândalos econômicos, ligação aos grandes grupos econômicos (12); nada mais simbolizam que o exercício do poder político decorrente da autoridade que detêm no Estado e das competências profissionais exigidas por este novo modelo ideológico.

Outro fator originário da crise política relaciona-se à falência dos modelos sociais que apareceram como alternativas viáveis a superação do capitalismo. Como ideologia e como forma de sociedade, primeiro o socialismo e posteriormente o comunismo, tinham como objetivo principal extinguir o modelo capitalista, sendo que este era atravessado por várias contradições e conflitos inerentes da expropriação do homem pelo homem, da classe proletária (mão de obra assalariada) pela classe dominante (detentores dos meios de produção).

Todavia, com a generalização das políticas sociais e econômicas dos países capitalistas mais desenvolvidos, muitas das reivindicações e reformas que integravam os moldes de sociedades políticas dos partidos socialistas passaram a fazer parte do contexto sócio-político dos governos ideologicamente e programaticamente capitalistas (13). Assim, iniciado este modelo ideológico capitalista com fundos societários nos moldes socialistas, e depois com a crise de regulação do mercado capitalista em relação a "fragmentação social produzida pelas distintas formas de flexibilização laboral"(14), os partidos socialistas e comunistas, esvaziados de propostas ideológicas e estruturais credíveis, foram constrangidos a assumirem-se como modalidades alternativas de gestão do poder político capitalista, e não mais como modelos alternativos de sociedade. O que nos remete ao que expõe claramente Sader:

"As formas de democracia existentes no mundo atual já nem sequer correspondem a seus modelos clássicos. As políticas neoliberais erodiram a legitimidade e a base de apoio dos Estados, levando a processos de rápido desgaste dos governos, à desmoralização crescente dos parlamentos e dos sistemas judiciais, ao debilitamento e à descaracterização dos partidos políticos, ao esvaziamento dos sindicatos, a dificuldades crescentes para os movimentos sociais, ao desinteresse do cidadão pela política e à máxima redução da atividade política a uma prática profissional, realizada por especialistas, monopolizada por elites cada vez mais distanciadas da massa da população, sem nenhum controle em que a cidadania fica reduzida a exercícios formais, tristes e burocráticos de votação a cada tanto tempo." (15)
Devido a este processo evolutivo, é possível observar a alternância do poder político nos diferentes níveis do exercício do poder.

O terceiro fator que nos faz refletir sobre a crise política atual está intimamente articulado com a crise generalizada de regulação do mercado em relação à precariedade da vinculação contratual do mundo do trabalho e disparidade indissolúvel das classes sociais. No que concerne a esta crise, temos que as perversões criadas pela burocratização das funções e tarefas do processo político de governo do Estado estão paralelamente ligadas. (16)

O desvirtuamento, a omissão e, principalmente, o desrespeito a prática política para as quais foram eleitos já nos levam a descrença na classe política. Por sua vez, a sociedade civil (o povo) está cada vez mais alienada, impotente para refletir, decidir e participar na máquina pública, a grande massa de indivíduos que compõem esta sociedade limita-se a sobreviver num contexto que lhe é adverso e indiferente, mas que, ideologicamente, lhe assegura bem estar social e lhe evita sanções por parte do poder político vigente.

A ideologia, então, urge como instrumento e ingrediente de manutenção social e funcional do poder político e, principalmente, como ferramenta de manipulação que proporciona a "normalização" da expropriação do trabalho da massa em virtude da manutenção da estrutura de mercado de capital, base das sociedades capitalistas. Este instrumento mascara a realidade social às vistas daqueles que transformam os meios de produção para que, assim, mantenham-se alienados e facilmente manipuláveis.

Num levantamento racional e evolutivo da história, é viável e próprio que sejamos induzidos a pensar que qualquer movimento de socialização do indivíduo ao seio de um grupo qualquer é inconscientemente atravessada por constrangimentos formais e informais, estruturais e funcionais que decorrem da própria condição humana, considerando este como um ser intrinsecamente biológico e social. Desta forma, cabe ressaltar o que Hobbes preconiza:

"Poderá parecer estranho a alguém que não tenha considerado bem estas coisas que a natureza tenha assim dissociado os homens, tornando-os capazes de atacar-se e destruir-se uns aos outros. E poderá portanto talvez desejar, não confiando nesta inferência, feita a partir das paixões, que a mesma seja confirmada pela experiência. Que seja portanto ele a considerar-se a si mesmo, que quando empreende uma viagem se arma e procura ir bem acompanhado; que quando vai dormir fecha suas portas; que mesmo quando está em casa tranca seus cofres; e isto mesmo sabendo que existem leis e funcionários públicos armados, prontos a vingar qualquer injúria que lhe possa ser feita. Que opinião tem ele de seus compatriotas, ao viajar armado; de seus concidadãos, ao fechar suas portas; e de seus filhos e servidores, quando tranca seus cofres? Não significa isso acusar tanto a humanidade com seus atos como eu o faço com minhas palavras? Mas nenhum de nós acusa com isso a natureza humana. Os desejos e outras paixões do homem não são em si mesmos um pecado. Nem tampouco o são as ações que derivam dessas paixões, até ao momento em que se tome conhecimento de uma lei que as proíba.

A Estruturadas Sociedades Medievais e Contemporâneas

INTRODUÇÃO

A renovação do interesse pelas cidades marcou o início do novo século. O século XXI será um século urbano, quando mais pessoas viverão em cidades do que em qualquer outro tipo de formação espacial. Há o temor de que grande parte desse processo de urbanização se dê nas cidades do Sul global, cidades que têm sido caracterizadas pelo hipercrescimento. Para além da hipérbole demográfica, há também a constatação de que as cidades são os locais centrais de administração e controle do capitalismo global contemporâneo. Os teóricos da "cidade global" retratam uma ecologia da globalização que é essencialmente uma hierarquia de cidades e que pode ser entendida tanto como um argumento darwinista sobre a "sobrevivência do mais apto" quanto como uma análise durkheimiana da divisão do trabalho. Aceite-se ou não tais mapeamentos ecológicos da globalização, o tema persiste: apesar do discurso da desterritorialização, as cidades e seus territórios ainda importam.

Mas há muita discordância sobre como interpretar a paisagem urbana de hoje. De um lado, um discurso otimista vê as cidades como arenas de vivência, subsistência e transformação social3. Em locais como a América Latina, há o sentimento de que a descentralização da governança, passando da escala nacional para a escala urbana, está relacionada com uma "revolução democrática silenciosa". Nos Estados Unidos, persiste a esperança de que as políticas urbanas são capazes de fazer frente ao chauvinismo dos regimes nacionais, como revelam as tentativas em diversas cidades, como São Francisco, de legalizar o casamento gay, muitas vezes contrariando decisões dos governos estadual ou federal. De outro lado, um certo discurso crítico vê o surgimento de formas fragmentadas e dispersas de cidadania urbana, constituídas por enclaves fechados e espaços exclusivos. A democracia, na formulação teórica provocativa de Yiftachel e Yakobi, é territorializada segundo uma "etnocracia urbana", uma forma de governança marcada por divisões raciais e étnicas profundas. Estudiosos do surgimento do neoliberalismo, as ideologias do livre mercado que predominaram durante a década de 1980, chamam a atenção para a forma pela qual projetos de renovação urbana conduzidos por interesses privados são acompanhados por um conjunto de políticas perversas que aceleram a remoção dos pobres das cidades. Se São Francisco resume um tipo de regime urbano que "civiliza" e "liberaliza" a cidadania nacional, também resume um conjunto de políticas urbanas neoliberais vis e agressivas que criminalizam os despossuídos em nome do desenvolvimento urbano.

Como colocar em ordem essas diferentes interpretações das cidades e da cidadania? Algum desses discursos se sobrepõe ao outro? Ou descrevem processos muito distintos? É evidente que as narrativas concorrentes apontam para abordagens teóricas diferentes. Mas há algo mais: os paradoxos insistentes da cidadania urbana amplificados pelos paradoxos do processo de globalização contemporâneo. Por exemplo: uma pesquisa recente de Perlman sobre as favelas do Rio de Janeiro mostra como a democratização pode ser acompanhada pelo aprofundamento da desigualdade e como melhorias de infraestrutura podem existir ao lado da violência extrema do tráfico internacional de drogas e do aparato estatal. A análise de Las Vegas feita por Rothman indica, igualmente, que algumas políticas urbanas para o espaço público são constituídas segundo a ideia de liberdade, mas a própria noção é concebida como "estar livre de" (da presença dos pobres urbanos, de protestos) ou como "liberdade para consumir". Há, portanto, uma duplicidade inerente à ideia de liberdade, que é territorializada no âmbito da cidadania urbana.

Neste artigo, procuramos mostrar que a discussão atual a respeito das cidades e da cidadania pode ser abordada a partir da referência conceitual oferecida pela cidade medieval. A cidade medieval nos lembra que a relação entre cidades e globalização não é nova. Se hoje a cidade global é o comando e o núcleo central do comércio internacional, então a cidade medieval também pode ser considerada uma cidade global. Seja o argumento de Pirenne de que o renascimento econômico do século XII levou à formação de "cidades livres", seja o argumento exatamente oposto de Mumford de que foi o reaparecimento da "cidade protegida" que ajudou a reabertura das rotas comerciais internacionais, o vínculo entre a cidade medieval e o comércio global é inquestionável. Mas, talvez ainda mais importante, a cidade medieval traz à mente os paradoxos, as exclusões e as segmentações que sempre estiveram associados à estrutura das cidades e à organização urbana. Assim, Pirenne refere-se à cidade medieval como uma "cidade livre", enquanto Mumford refere-se a ela como uma "cidade protegida". Em outras palavras, a cidade livre medieval era também a cidade protegida; não havia um conceito medieval de liberdade que não fosse também um conceito de associação, clientelismo e defesa.

Essa "duplicdade" é uma ferramenta analítica valiosa para o exame das geografias urbanas contemporâneas. Nas seções que compõem este artigo, destacamos três formações espaciais peculiares: o condomínio fechado, a ocupação e o campo, mostrando como formas do urbanismo medieval tornam possível uma compreensão dos paradoxos e dos potenciais desses três espaços. Enfatizamos três pontos de congruência entre as cidades medievais e as cidades contemporâneas. Em primeiro lugar, se a cidadania moderna foi constituída por meio de uma série de direitos individuais abstratos enraizados no conceito do Estado-nação, então agora assistimos à emergência de formas de cidadania localizadas em enclaves urbanos. Como nos tempos medievais, essa cidadania está ligada ao clientelismo (centrado na figura do bispo, por exemplo) ou ao pertencimento a associações (como a guilda), e em ambos os casos trata-se fundamentalmente de proteção. Em segundo lugar, tais formas de cidadania substituem ou são mesmo hostis ao Estado. Das associações de proprietários de imóveis à declaração por grupos religiosos fundamentalistas de repúblicas islâmicas em seus bairros, são sistemas privados de governança que operam como feudos medievais, impondo verdades e normas muitas vezes contrárias às leis nacionais. Em terceiro lugar, essa lógica de dominação tem manifestações territoriais. A cidade se articula, segundo a expressão de Holston e Appadurai, na forma de "colméias de jurisdição", um "corpo medieval" de "associações privadas sobrepostas, heterogêneas, não-uniformes e crescentemente privadas".

É importante lembrar que, ao fazer uso da categoria analítica da cidade medieval, não estamos insinuando que a Idade Média seja um período histórico consistente ou uma geografia unificada e uniforme. Apesar de não levarmos em consideração as diferentes geografias da cidade medieval, cremos que a diversidade temporal e espacial da cidade medieval contribui mais do que prejudica nossa tarefa analítica. Por exemplo, um dos debates a respeito da cidade medieval envolve a suposta diferença entre os contextos europeu e do Oriente Médio. Kostof, com base no texto clássico orientalista de Grunebaum15, considera que a cidade medieval "islâmica" não dispunha das formas de autogovernança e da organização municipal das cidades medievais europeias. Para ele, à Cairo medieval, uma "massa solidamente construída" repleta de "labirinto de becos sem saída", falta um âmbito público16. Em contraste, ele vê em cidades como Florença uma batalha "para assumir o controle de suas ruas e espaços abertos [...] para fazer da estrutura da cidade um plano intencional [...] e uma ordem visível". Em outras palavras, a cidade islâmica desordenada era uma alegoria que tornou possível a norma da cidade europeia ordenada. Tal distinção entre cidades islâmicas medievais caóticas e misteriosas e as cidades medievais europeias funcionalmente ordenadas ressoa hoje na distinção entre as cidades ingovernáveis do Terceiro Mundo e as cidades governadas dos Primeiro Mundo. É uma distinção que tem sido questionada no que diz respeito às cidades medievais, e os teóricos afirmam que o que está em jogo são diferentes lógicas de regulação e administração, e não a presença ou ausência de governança18. A mesma distinção é igualmente colocada em questão no que diz respeito às cidades contemporâneas.

A história da cidade medieval recobre muitos séculos. Em vez de procurar por um urbanismo medieval coerente, dedicamos uma atenção especial às diferentes temporalidades e formas da cidade medieval e sustentamos que essa diversidade permite uma abordagem muito útil das transições e transformações urbanas. A cronologia do urbanismo medieval pode ser resumida da seguinte forma: com o fim do Império Romano, as cidades antigas declinaram; nos primeiros tempos da Idade Média, nos séculos IX e X, a cidade sobrevive como cidade espiscopal governada por bispos; os séculos XI e XII assistem a um ressurgimento das cidades como centros de comércio internacional e de transações econômicas e, mais genericamente, para usar a expressão de Braudel, como "postos avançados da modernidade", uma "coleção de regras, possibilidades, cálculos"; essas cidades davam corpo a um embate por soberania, não apenas nas múltiplas soberanias que marcaram a política econômica do período medieval, mas também nas tentativas das cidades de se tornarem "estados dentro do Estado"; no século XVIII, essa luta havia sido resolvida em favor de uma estrutura política caracterizada por um centralismo barroco incorporado em um Estado nacional, no qual os privilégios de cidadania eram obtidos não da cidade, mas do príncipe, e podiam ser exercidos em qualquer lugar do reino.

Pretendemos aqui relacionar os espaços urbanos contemporâneos com esses momentos históricos. Mumford sustenta que o mito do século XVIII do contrato social, que sobrevive na ideia de cidadania nacionalatéoséculo XX, era uma "racionalização da base política da cidade medieval". Será possível então ver a dissolução da cidadania nacional, sua fragmentação, localização e descentralização na escala urbana, como um retorno ao que Mumford chama de "localismo medieval"? Serão os enclaves fechados do urbanismo contemporâneo iguais às cidades medievais "sustentada por privilégios, adquiridos ou extorquidos"? Poderia o urbanismo estilhaçado de hoje ser considerado semelhante ao da cidade do fim da Idade Média? Se voltarmos ainda mais no tempo, encontramos nos inícios da Idade Média a cidade do bispo, a cidade onde, como nos lembra Pirenne, a ideia da cidadania, da civitas, era sinônima com a dominação religiosa e na qual o bispo exercia poderes de policiamento e administração. Seu paralelo no mundo islâmico também é relevante nesse caso: fosse a cidade dos califas ou a cidade do sultão, a "cidade Islâmica" era o modo de existência urbana predominante. Seriam os regimes de governo religiosos em funcionamento nos espaços informais de cidades contemporâneas reminiscentes da cidade medieval religiosa?

E se voltamos ainda mais no tempo, nos deparamos com o fim do Império e com o debandar da cidadania urbana e da cidade. Teria esse momento alguma semelhança com o nosso momento presente, no qual, como notou Agambem, "o paradigma biopolítico é o campo, e não a cidade"? Com o declínio do Império Romano, a vida pública da cidade de Roma centrou-se cada vez mais nos "rituais de extermínio", que alcançou seu clímax nos espetáculos de gladiadores, "morte na tarde", dramatizados na forma de circo. Hoje, as cidades buscam aplicar a estratégia do espetáculo na criação de vida pública; algumas, como Las Vegas, alegam ser o maior show da terra, assim como Roma já foi o maior show da terra. Mas o show também está se transformando em "morte na tarde" - a "vida nua" de Agambem apresentada como espetáculo, ao vivo pela CNN e Al - Jazeera. Comaroff e Comaroff chamam atenção para o caráter mágico do Estado na era do capitalismo milenar, o excesso ritualístico que funciona como álibi para a real politik. Em uma era de império, o excesso ritualístico toma a forma de rituais de extermínio exibidos como hiper-realidade. Ou seria esse o espetáculo que marca o declínio do império?

Deve estar claro, agora, que o nosso uso da cronologia medieval opera ao reverso-vamos do centralismo do século XVIII ao localismo medieval do fim da Idade Média ao governo de bispos do início da Idade Média e, finalmente, ao fim do Império Romano. Ao fazê-lo, não estamos propondo uma teoria a respeito da regressão, reflexo invertido da doutrina do progresso. Antes, procuramos destacar as idas e vindas da urbanização, a simultaneidade de diferentes lógicas urbanísticas e a importância de uma abordagem não-linear do tempo histórico. Nossa abordagem, como diria Benjamin, é histórico-materialista, mais do que historicista, na qual procuramos "fazer irromper, do curso homogêneo da história, um período específico". Esperamos que tal abordagem torne possível um complexo engajamento com a história, que nos permita pensar a história não como periodização linear mas, em vez disso, como uma fonte de conceitos, cuja exploração possibilita a articulação da teoria. Essa abordagem também coloca em perspectiva histórica práticas urbanas aparentemente "novas", mostrando assim que não são simplesmente formas desviantes ou anômalas mas componentes fundamentais da paisagem urbana. Se parte de nossa pesquisa anterior teve alcance "transnacional", usando "lá" para colocar questões críticas a respeito "daqui", então este argumento é "trans - histórico", e gera questões a respeito de "agora" desde a perspectiva do "então".

Acima de tudo, esse artigo é uma tentativa de tornar mais complexos conceitos como "modernidade" ou "democracia", pressupostos em discussões urbanísticas contemporâneas. A longa história das cidades revela o imbricamento entre democracia e liberdade com as estruturas políticas do império e do medievalismo. A articulação das cidades de hoje como "medievais" coloca em questão a inevitabilidade do progresso. A fim de dirigir a atenção para os paradoxos persistentes da vida e forma urbanas, fazemos uso da expressão paradoxal "modernidade medieval", sugerindo que formas medievais de organização e comunidade se escondem no coração do moderno.


ENCLAVES FECHADOS

Nas cidades, de Los Angeles a Manila, o paradigma de organização espacial mais comum hoje é o enclave fechado, mantido com a ajuda de técnicas sofisticadas de vigilância, policiamento e arquitetura. Esses espaços são não apenas murados e cercados, mas estão também ligados a outros espaços de exclusão, tais como megaprojetos urbanos e desenvolvimentos dos hábitos de lazer. É essa combinação de espaços urbanos de sedução e segurança que Graham e Marvin chamam de urbanismo de estilhaços: redes de segregação espacial mantidas por meio de infraestruturas especiais que são quase literalmente "segregadas" do ambiente urbano circundante. Tais formas de segregação manifestam-se hoje tanto horizontal como verticalmente. Das estradas elevadas semiprivadas e rotas aéreas aos edifícios-fortalezas, há uma paisagem tridimensional de exclusão e polarização.

Essas tendências aparecem de forma bastante consumada no Brasil, onde a elite se retirou a condomínios fechados, procurando romper suas conexões com os pobres urbanos, apesar de, assim como afirma Caldeira, os pobres ainda serem necessários para limpar as piscinas e cuidar dos jardins. Hoje, São Paulo possui a maior frota privada de helicópteros porque sua elite urbana abandonou as ruas da cidade pelos céus inacessíveis. O helicóptero mais vendido no Brasil é o Robinson R, que acomoda confortavelmente quatro pessoas. Custo algo em torno de US$380 mil, aproximadamente noventa vezes a renda anual média de um habitante de São Paulo. Para que ter uma BMW blindada quando se pode usufruir de um helicóptero? Nessa cenário de segregação digno de Blade Runner, enquanto as poucas centenas de membros da elite urbana vagam pelos céus em seus helicópteros, 3, 7 milhões de habitantes enfrentam todo dia o sistema precário de transporte público da cidade. Weizman e Segal entendem esse entalhamento da cidade em esferas de circulação separadas como uma política da verticalidade. Eles observam que os assentamentos judeus estrategicamente localizados na Cisjordânia ocupam espaços nas colinas, enclaves suburbanos separados dos vizinhos palestinos, muito mais pobres, mas que também gozam de superioridade vertical de vigilância e de redes de infraestrutura fornecidas pelo aparato militar do Estado de Israel.

Tais paisagens de muros e cercas indicam uma territorialização peculiar da cidadania, ou o que Low chama de nova estrutura espacial de governo. A principal característica desses regimes espaciais é a formação de conjuntos cercados governados por entes privados. Os Desenvolvimentos de Interesse Público (DIP) são um exemplo dessa tendência. Uma DIP é uma comunidade na qual os residentes são proprietários de ou controlam as áreas comuns ou instalações compartilhadas, o que implica direitos e obrigações recíprocas garantidos por um corpo administrativo provado. Definida legalmente como compromissos, contratos e restrições (CC&Rs) especializados, essa estrutura de governança cria novos tipos degovernos privados na forma de "associações de condôminos". Como reparou McKenzie, essas "privatopias" marcam a "secessão dos bem-sucedidos". Aqui, a lei contratual é a autoridade suprema; a ética da propriedade é o fundamento da vida comunitária; e a exclusão é o fundamento da organização social.

Os enclaves fechados podem ser analisados em relação ao urbanismo medieval e à formação das cidades autônomas. O argumento famoso de Pirenne sobre as cidades medievais afirma que "o ar da cidade liberta": "Liberdade, na Idade Média, era um atributo tão inseparável da condição de cidadão de uma cidade como o é hoje da condição de cidadão de um Estado". Os elementos - chave dessa liberdade incluíam a liberdade pessoal - isto é, a liberdade da servidão feudal - e liberdade fundiária - isto é, a liberdade de transferir e adquirir propriedade de uma maneira semelhante àquilo que hoje chamamos de propriedade imobiliária. Tais liberdades eram concedidas pelos códigos municipais, criando um distrito legal para o qual habitar uma cidade corporativa por um ano e um dia anulava as obrigações de servidão, o mais notável das quais era o controle do senhor feudal sobre as mentes e os corpos dos súditos feudais. Esses enclaves legais eram governados segundo um sistema de regras e regulamentações, incluindo algumas que davam origem a um ambiente construído altamente controlado, dotado de unidade estética. Em Siena, por exemplo, houve grande esforço para completar, polir e codificar o arranjo físico mais informal de seus primeiros tempos. Ali, no século XIV, o conselho da cidade ratificou uma lei determinando que "todos os novos edifícios em construção devem estar alinhados com os edifícios ao seu redor [...] e devem ser igualmente construídos de forma a contribuir para a beleza da cidade". Em Bruges, os comerciantes representados pelas guildas societárias exerciam um papel central nos processos que governavam a formação dos espaços públicos e, na Florença do fim da Idade Média, a jovem república codificou seu controle sobre as ruas da cidade. Era uma unidade estética, que submetia ou sujeitava a ação individual a um ideal coletivo mais amplo. Os compromissos, os códigos e as regulamentações (CC&R) das associações de condôminos de hoje e os códigos e guias de padrão do Novo Urbanismo têm efeito similar, criando enclaves esteticamente codificados e unificados.

As consequências mais importantes do urbanismo medieval para a compreensão das cidades contemporâneas estão ligadas ao conceito de liberdade. O código municipal que garantia liberdade era um tanto paradoxal. Em primeiro lugar, era um enclave de liberdade cuja premissa era a ideia de uma "liberdade de" - nesse caso, a liberdade de ferramentas de confisco e outras extorsões cobradas pelos senhores feudais48 ou pelos bispos. Pirenne escreve:

    Nada estava mais distante da mente da classe média original do que qualquer concepção dos direitos do homem e do cidadão. A própria liberdade pessoal não era reivindicada como um direito natural. Era cobiçada apenas por causa das vantagens que conferia.

Essas vantagens estavam ligadas principalmente à ocupação, como o exercício de ofícios e a prática de comércio. Em segundo lugar, o código era inerentemente excludente. Suas vantagens, tais como os benefícios fiscais ou as proteções do código penal, estendiam-se apenas àqueles que habitassem o enclave codificado. A classe média urbana tornou-se então um grupo social como o clero e a nobreza - uma ordem privilegiada dotada de uma forma legal e territorial específica que lhe permitia preservar seu status excepcional e os benefícios a ele associados, pela exclusão da massa de habitantes rurais. Nas palavras de Pirenne, a liberdade era um monopólio. Em terceiro lugar, tal liberdade só poderia ser exercida por meio da associação. "Não havia segurança a não ser na proteção do grupo, nem liberdade que não reconhecesse as obrigações constantes de uma vida corporativa". Apesar das diferenças de escala, é possível comparar as associações de proprietários de imóveis hoje ao enclave medieval codificado. Hoje, a propriedade é central da mesma forma que a ocupação era central na Idade Média. Em ambos os casos, a cidadania urbana tem como premissa a administração de um espaço secessionário dotado de regulamentações e códigos internos.

Finalmente, os enclaves medievais de associações competiam uns com os outros, criando condições para o surgimento da soberania fragmentada que discutiremos na próxima seção. A cidade codificada do fim da Idade Média era uma revolta contra a dominação, do início da Idade Média, dos bispos. As cidades codificadas eram muitas vezes criação de comerciantes prósperos que governavam como uma "oligarquia da cidade". Em algumas dessas cidades, a guilda dos comerciantes chegava a dominar a guilda dos artesãos, superando o poder dos artesãos-mestres com o poder dos comerciantes, como nas cidades flamengas até a revolta das guildas de artesãos no século XIV. A competição entre as guildas era comparável à competição entre comerciantes e senhores feudais. Em alguns casos, os senhores feudais criavam códigos municipais que garantiam "a liberdade pessoal da condição de servidão, liberdade de movimento, liberdade de taxas irregulares, o direito a possuir propriedades". Em outros casos, alianças eram feitas entre autoridades reais e enclaves municipais codificados, com o objetivo de enfraquecer a nobreza feudal. Assim, a liberdade era constantemente negociada, fosse por secessão fosse por hierarquização, na paisagem medieval.

O caso das cidades italianas do fim da Idade Média oferece um exemplo dessas disputas. Aqui, segundo as análises de Kostof, famílias da nobreza haviam reproduzido, no interior das cidades, os bastiões fortificados de suas residências rurais, criando bairros nucleares semi-autônomos com suas torres de defesa ameaçadoras. Um dos principais desafios das novas comunas, ou cidades-estado autogovernadas, no fim da Idade Média, seria a abertura desses bolsões privados e a retomada das ruas e dos espaços públicos em nome de todos os cidadãos.

Mas a própria cidadania era um conceito limitado: "cidadãos integrais" eram uma "minoria desconfiada, uma cidade pequena dentro da própria cidade". E enquanto esses enclaves dos poderosos eram desafiados, a própria cidade tentava manter-se como enclave, procurando, em outra escala, tornar-se cidade-estado ou república municipal. Como nota Pirenne, "se elas tivessem poder, teriam, em toda parte, se tornado Estados dentro do Estado". Entre os séculos XV e XVIII, na Europa, esses enclaves estavam "reunidos sob um novo signo: o signo do Príncipe", exemplificado pelo tratado de Maquiavel. A cidadania seria agora codificada e regulada não mais segundo o status excepcional do código da cidade, mas generalizada para todo o espaço econômico do Estado-nação moderno.

É possível falar em enclaves fechados e cidadania contemporânea sem fazer referência às cidades medievais. É possível documentar a crescente quantidade de enclaves para explicar o funcionamento dos circuitos do capital de propriedade e analisar a "ecologia do medo" que produz a estética das comunidades protegidas. São temas de pesquisa importantes, mas não fazem parte de nosso projeto. Afirmamos que, nesse breve desvio histórico, a analogia com a Idade Média ilumina duas dimensões dos enclaves fechados contemporâneos: a natureza monopolística da liberdade conforme territorializada no espaço urbano e codificada nos códigos municipais; e a multiplicidade e fragmentação da soberania. Tais questões levam da visão dos enclaves fechados como "efeitos" do neoliberalismo ou do conservadorismo social à análise de suas relação com as tecnologias de subjetivação, soberania e espacialidade. Os enclaves fechados dão corpo a que Rose, valendo-se de Foucault, chamou de "poderes da liberdade", as formas de governar que são o pressuposto da liberdade dos governados. Em outras palavras, o enclave é uma importante tecnologia de dominação, uma forma de dominação que opera por meio da dupla hélice da liberdade e soberania, liberdade e proteção.


A OCUPAÇÃO REGULAMENTADA

Ao longo da história, a ocupação tem sido um mecanismo importante de uso da terra. Hoje, as ocupações, muitas vezes chamadas de "habitações informais", são parte considerável do ambiente edificado das cidades do Sul global. Os processos por meio dos quais as ocupações surgem, se desenvolvem, se consolidam e adquirem forma urbana são numerosos e diversos. Muitas vezes, elas revertem a trajetória tradicional do planejamento urbano, em primeiro lugar ao dar início à ocupação da terra, seguido pela construção e então pela aquisição de infraestrutura e serviços. Em vez de serem entendidas como práticas "ilegais", tem se mostrado mais útil considerá-las atividades não-regulamentadas em um contexto no qual atividades semelhantes são regulamentadas. Essa "não-regulamentação" é em si e por si uma forma distinta de regulamentação, um conjunto de táticas que recriam a informalidade, transformando-a em governamentabilidade. Como sustentamos em outra ocasião, a informalidade urbana é uma lógica de organização urbana.

São os processos de estruturação que constituem as regras do jogo, determinando a natureza das transações entre indivíduos e instituições e no interior das instituições. Se a formalidade opera por meio da fixação de valores, incluindo o mapeamento do valor espacial, então a informalidade opera por meio da constante negociabilidade do valor.

Roy sustentou especificamente que a informalidade é expressão do poder soberano de decretar Estado de exceção:

    Os aparatos estatais legal e de planejamento têm o poder de determinar quando decretar essa suspensão, de determinar o que é informal e o que não é, e de determinar quais formas de informalidade devem prosperar e quais devem desaparecer. O poder estatal é reproduzido por meio da capacidade de construir e reconstruir categorias de legitimidade e ilegitimidade.

A regulamentação, então, é crucial para a informalidade, e é esse conceito que se torna evidente com o estudo do urbanismo medieval.

O tema da ocupação é um elemento importante do discurso sobre as cidades medievais. Kostof sustentou que a maioria das cidades medievais, seja na Europa seja no Oriente Médio, era um resultado de "sinoecismo": o processo orgânico que ocorre quando diversas aglomerações menores - normalmente, rurais se tornam contíguas ao longo do processo de crescimento urbano. Em obra posterior, Kostof identifica a "medievalização" com a crescente informalidade das ocupações urbanas. Sua análise de Roma durante o colapso do Império Romano mostra como os escritórios municipais da Praefectura Urbana param de funcionar, como os cidadãos começam a deixar a paisagem densa das edificações habitacionais - as insulae - e a ocupar o interior e o entorno de muitas das estruturas abandonadas da cidade velha. Esse processo gradual, que Kostof chamou de "medievalização de Roma", levou mil anos e gradualmente transformou o tecido urbano geométrico da cidade a ponto de camuflar por completo a estrutura original sobre a qual foi construída.

No entanto, há muito mais envolvido nesses processos do que simplesmente a transformação da forma física e da morfologia urbana. O que está em jogo é uma política espacial peculiar. Assim como na contemporaneidade, a ocupação na Idade Média era uma prática altamente regulamentada. O que à primeira vista parece ser uma paisagem desordenada foi de fato produzido por uma teia intrincada de normas e regulamentações. Nas cidades medievais do Oriente Médio, os muhtasib, figura equivalente à podesta europeia, agiam como policiais de edifícios e mercados. Eles não erradicaram a informalidade, mas antes formalizaram práticas informais ao permitir que acontecessem, primeiramente, depois aceitá-las como precedente e, por fim, encontrar decisões legais islâmicas para validar sua aceitação. Por exemplo, um proprietário de loja ocupa determinada parte da rua para exibir sua mercadoria. Não existe um código que o impeça de fazê-lo, mas, dessa forma, o comerciante interfere na circulação e no movimento dentro da cidade. Como resultado de uma queixa ou de uma inspeção pelo órgão dos muhtasib, o lojista recebe ordens de ou retirar seus produtos do espaço público ou lhe é concedida autorização para ocupar apenas uma parte dele. Outros lojistas observam o incidente e, por fim, adotam a convenção. Assim, surge uma forma de apropriação do espaço público urbano para uso comercial privado. Essa forma de vida urbana é então aceita e normalizada tanto pela administração da cidade como pelos residentes. Outro exemplo envolve o morador de uma casa que a expande, adicionando um segundo andar. Alguns elementos estruturais devem ser construídos no espaço público da rua, possivelmente sobre esse espaço, e o acréscimo também interfere no espaço privado de outras casas. Tais violações de normas sociais não seriam toleradas pelos muhtasib, então a pessoa que realiza a expansão deve negociar não só com os vizinhos a exata localização das janelas, resolvendo assim o problema da invasão de privacidade, como também com a administração da cidade a extensão da invasão do espaço público; assim, minimiza a infração sem deixar de ocupar a parte do espaço aéreo de uma rua, mas sem interferir com sua função de circulação e transporte. Tais exemplos ocorrem tanto no Oriente como no Ocidente - os Sabbats, em Túnis, e o Sotto-Portice, de Veneza. Como resultado das negociações tão delicadas do tecido urbano da cidade, uma constelação de formas irregulares é legitimada. Esse processo de negociabilidade, que existia em muitas cidades árabes durante a Idade Média, não deve ser interpretado como uma revolta contra o Estado; deve ser entendido como a articulação de uma forma específica de cidadania que envolvia aliança entre os diferentes grupos que constituíam a massa das sociedades urbanas.

A discussão a respeito da informalidade moderna tem dado muita atenção à política urbana. É consenso hoje que os Estados modernos, sejam democráticos sejam autoritários, engendram e administram a informalidade como uma forma de subscrever a acumulação capitalista e assegurar sua legitimidade política. No entanto, nos últimos anos, tem havido um interesse crescente no que parecem ser novas formas de governança e política no âmbito da informalidade urbana. Com o aprofundamento das medidas neoliberais de austeridade, surgem atores não-estatais que assumem o papel de Estado de facto em ocupações informais em várias regiões do mundo. O mais impressionante é a convergência entre as geografias informais e a territorialização do fundamentalismo religioso. Com o abandono dos programas sociais pelo Estado, grupos religiosos fundamentalistas se tornaram o principal prestador de serviços urbanos em ocupações informais.

Um dos lugares onde esses processos se tornaram visíveis pela primeira vez foi o bairro de Imbaba, no Cairo. Em 1992, o exército egípcio realizou incursões em Imbaba, pondo fim no controle do bairro por um grupo islâmico. Como um grupo islâmico pode criar essa zona de soberania? Parte da resposta está ligada à reestruturação neoliberal. A adesão estrita do Egito às regras de ajuste estrutural foi de mau agouro para os pobres urbanos de cidades como o Cairo. Em bairros como Imbaba, constata-se um grande aumento da pobreza e do trabalho informal. Formado por conjuntos habitacionais dilapidados e ocupações, em fins dos anos de 1970 Imbaba era palco de tumultos por alimentos desencadeados por políticas do FMI. Nos anos de 1980, Imbaba havia sido tomada pelo Gamaa al Islamiya, grupo ligado ao assassinato do presidente egípcio Anwar Sadat, que se tornou o Estado de facto. De um lado, passou a prestar a maior parte dos serviços sociais-da saúde à educação. De outro, dividiu Imbaba em dez sessões, cada uma comandada por um "emir", que governava segundo interpretações fundamentalistas do Islã.

Imbaba não é uma exceção. No Líbano, o Hezbollah, grupo que ocupa uma posição alta na lista norte - americana pós - 11 de novembro de organizações terroristas, tornou-se igualmente um Estado de facto. Seus programas de desenvolvimento nos subúrbios do sul de Beirute incluem o fornecimento de casas por meio do Jihad para construção, educação, serviços de saúde, água, sistema de esgoto e eletricidade. Como Beirute foi reconstruída segundo projetos urbanísticos sofisticados, tais como o Solidere ou o Elyssar, o Hezbollah tem se destacado como o principal mediador dos direitos à habitação da população xiita pobre. Sua ascensão ao poder só pode ser entendida no contexto da guerra civil em Beirute, quando a cidade foi dividida em diversas zonas, cada uma governada por uma milícia religiosa, que não era apenas máquina de guerra, mas também órgão de prestação de serviços e de desenvolvimento. Em Mumbai, grupos hindus fundamentalistas, como o Shiva Sena, ganharam apoio popular em toda a cidade ao prometer reivindicar espaço no mercado imobiliário incrivelmente fechado. Essa reivindicação custou, como notou Appadurai, a integridade do corpo muçulmano. Ou, no caso das favelas e das ocupações latino-americanas, o pentecostalismo surgiu como lógica de governança e política. Obviamente, nem todos esses grupos religiosos são fundamentalistas. Em alguns casos, a lógica da religião é secundária em relação a redes de parentesco e comunitárias, assim como nas associações de auxílio mútuo das cidades egípcias, descritas por Bayat como o "Islã social". No entanto, essas associações retalham a cidade em diferentes ordens de cidadania, dando origem a regimes religiosos de dominação urbana e regimes urbanos de dominação religiosa. Comaroff e Comaroff consideram esses regimes religiosos símbolo do capitalismo neoliberal: a "privatização do milênio" por meio da criação de estruturas paraestatais e a redefinição da cidadania como algo "condicional, parcial e situacional".

Mais uma vez, o urbanismo medieval oferece uma ferramenta analítica útil para a compreensão de tais processos contemporâneos. Segundo o retrato de Pirenne, no início da Idade Média, a cidade era sinônimo de administração religiosa. Os termos civis e civitas não tinham nenhum significado legal; significavam apenas residência na cidade episcopal. A dominação dos bispos desenvolveu-se no contexto do desaparecimento do comércio no século IX. Os bispos atuavam não apenas como líderes religiosos, mas também gozavam de poderes de polícia vagamente definidos, tais como a supervisão dos mercados e a regulamentação de ferramentas. Essa foi a articulação da cidadania no sentido restrito do clientelismo, sem nenhuma das complexas formas de associação urbana que viriam a recalibrar o clientelismo e a proteção no fim da Idade Média. Para Pirenne, as cidades codificadas tardo-medievais são uma revolta contra os bispos. Como deveríamos então olhar para regimes urbanos contemporâneos de dominação religiosa? Podem ser considerados a revolta contra o enclave fechado e a secessão dos bem-sucedidos? Se a Idade Média testemunhou o império do código, como revolta contra os bispos, então talvez o império de hoje dos bispos seja a revolta dos excluídos da generosidade do código neoliberal.

No entanto, como já discutimos, o urbanismo medieval raramente teve uma única lógica de dominação. A maior parte da cidade medieval era governada por uma aliança instável mas duradoura entre comerciantes, representados pelas guildas; autoridades religiosas, representadas pela Igreja; e burgueses, representados pela câmara municipal. As alianças com senhores feudais eram menos estáveis. Lapidus afirma que as cidades medievais do Oriente Médio, diferente de suas contrapartes européias, careciam de tais formas territorializadas de associação. Ele afirma que, no Oriente Médio, havia comunidades políticas "não governadas", mas que eram, ainda assim, mantidas unidas graças a relações sociais como associações religiosas muçulmanas. Apesar dos cálculos precisos de governança, a cidade medieval pode ser considerada, então, um espaço composto por soberanias em competição, que operavam por meio de uma lógica territorializada de associação e clientelismo, seja a dominação religiosa do início da Idade Média sejam as guildas urbanas da alta Idade Média.

Como no caso do enclave fechado, a informalização do espaço urbano contemporâneo pode ser discutida sem que se faça referência às cidades medievais. É possível vasculhar as conexões entre o neoliberalismo e a informalização; identificar as várias formas de informalidade na cidade neoliberal; rastrear o surgimento histórico de espaços como Imbaba no contexto da economia política da dependência e dos ajustes estruturais. Mas essas considerações, algumas das quais fizemos em outra ocasião, não são o foco de nossa preocupação neste artigo. Em vez disso, procuramos destacar aqui as formas pelas quais a analogia com a cidade medieval chama a atenção para uma dimensão crucial da ocupação regulamentada: multiplicidade e complexidade. A ocupação regulamentada da Idade Média funciona segundo a lógica do clientelismo. Ela expressa o caráter negociável das regras e regulamentações que governam o espaço da cidade. Mas quando o clientelismo é formalizado pela dominação dos bispos, o espaço de negociação possível é drasticamente reduzido. E, ainda assim, na cidade medieval, a lógica de dominação nunca é singular; o terreno é sempre aquele das alianças e soberanias instáveis. Tal discussão a respeito da lógica de dominação redefine o debate a respeito das cidades contemporâneas. O urbanismo de hoje tem sido frequentemente diagnosticado como um momento de aprofundamento da exclusão e da inclusão, mapeadas pelos padrões de segregação e dramaticamente representadas no ícone do muro ou da cerca. Esse é o vocabulário da "cidade dual", que evoca a imagem, de um lado, daqueles que estão conectados e, de outro, daqueles que foram desligados e tornados redundantes. A analogia com a cidade medieval permite uma nova compreensão daquilo que Mbembe e Roitman chamam de "a figura do sujeito na era da crise"86. Essa não é, simplesmente, uma figura que está incluída ou excluída, dentro do enclave fechado ou fora dele; antes, essa figura cria formas intrincadas de negociabilidade e racionalidade, assim como aquilo que Bayat chama de "a invasão silenciosa do ordinário". Tal abordagem permite ver o poder estrutural não como um regime de dominação monolítico e singular, mas, antes, como um domínio fragmentado de soberanias múltiplas e concorrentes. Isso é bastante evidente em ocupações informais contemporâneas, onde existe uma dura competição entre diferentes formas territorializadas de associação e clientelismo-sejam o Estado, as organizações religiosas, as ONGs ou as instituições internacionais de desenvolvimento. É esse excesso de poder, articulado de forma fragmentária e múltipla, que faz a cidade de hoje ser um espaço de dominação atordoante. Assim como na cidade medieval, essas soberanias concorrentes não devem ser entendidas em termos de um liberalismo fundado em grupos de interesse, como num sistema democrático de controles e equilíbrios. Antes, devem ser entendidas como um endurecimento de fundamentalismos e paroquialismos em constante fragmentação - uma política de feudos negociada por meio de regulações visíveis e invisíveis.


O CAMPO

O momento atual pode ser caracterizado como um momento de transição, no qual o império espreita ameaçadoramente no horizonte. Em anos recentes, tem crescido a sensação de que a globalização neoliberal está se transformando em globalização imperial, ou pelo menos revelando seu caráter inevitavelmente imperial. Uma das análises mais debatidas a esse respeito é aquela oferecida por Hardt e Negri. Eles sustentam que o império de hoje é um aparato de dominação descentralizado e desterritorializado88. No entanto, também enfatizam que esse "espaço suave" da soberania global requer uma nova gestão do espaço social, mais especificamente, formas fractais de administração:

    A segmentação da multidão tem sido, realmente, condição da administração política ao longo da história. A diferença hoje repousa no fato de que, enquanto nos regimes modernos de soberania nacional a administração atuava na direção de uma integração linear dos conflitos e na direção de um aparato coerente que os poderia reprimir [...] no quadro do império a administração de torna fractal e tem como objetivo integrar conflitos não pela imposição de um aparato social coerente mas pelo controle das diferenças.

Os autores comparam os regimes locais do império com sistemas políticos medievais, em particular a relação administrativa entre organizações territoriais feudais e estruturas monárquicas de poder. Tais formas de administração fractal são amplamente evidentes hoje. O Afeganistão pós - invasão é um exemplo perfeito. Ali, o assim chamado governo central, em resposta aos administradores imperiais, tem controle principalmente sobre Kabul, sendo que o restante do país é constituído por zonas de soberania sob controle de chefes de milícias. A respeito do novo momento da guerra, Mbembe escreve:

    A pretensão à autoridade máxima ou final em um espaço político não é coisa simples. Na verdade, faz surgir uma colcha de retalhos de direitos à dominação sobrepostos e incompletos, inextricavelmente sobrepostos e intrincados, no qual diferentes instâncias jurídicas de facto estão geograficamente emaranhadas e no qual abundam lealdades plurais, suseranias assimétricas e enclaves.

Sob tais condições, o tipo espacial paradigmático é o campo. Segundo as formulações de Agamben, o campo pode ser entendido como "um espaço no qual a ordem normal está de facto suspensa". Em outras palavras, o campo é o espaço no qual o Estado de emergência, e portanto o Estado de exceção, se torna regra, um arranjo espacial permanente. Considere, por exemplo, os debates recentes na Suprema Corte norte-americana a respeito dos detentos em Guantánamo, em que o governo, representado pelo sr. Theodore Olson, argumentou que os tribunais norte-americanos não tinham jurisdição sobre esses detentos por causa do caráter permanentemente excepcional da guerra contra o terror:

Ministro John Paul Stevens: Sr. Olson, supondo que a guerra tivesse acabado, você poderia continuar a manter essas pessoas detidas em Guantánamo, e haveria, então, jurisdição?

Sr. Theodore Olson: Nós acreditamos que não haveria jurisdição.

Ministro John Paul Stevens: Então a existência da guerra é, de fato, irrelevante para o sistema legal, não é?.

Se o império é entendido como uma fronteira sem fim de just bellum, guerra em nome da justiça, então o campo é exatamente o espaço no qual a violência é constantemente empregada em nome da paz e da ordem. Nesse sentido, o campo pode ser muitos espaços diferentes: a prisão, a prisão de guerra, o abrigo para sem - teto, o campo de trabalho, o campo de concentração, o campo de refugiados.

O campo é um espaço pós - cidade. Ele coloca em questão a relação normativa entre as cidades e a cidadania. Como afirma Agamben, o campo joga uma luz sinistra sobre os modelos a partir dos quais as ciências sociais, a sociologia, os estudos urbanísticos e a arquitetura hoje procuram conceber e organizar o espaço público das cidades de todo o mundo, sem nenhuma consciência de que em seu centro repousa a mesma vida nua (mesmo que tenha sido transformada e tornada, aparentemente, mais humana) que definiu a biopolítica dos grandes Estados totalitários do século XX.

A trindade Estado/sujeito/espaço que sustenta o discurso liberal a respeito da cidade e da cidadania é potencializada no campo. É um espaço "sem lei", um sujeito que é "vida nua", e um Estado que combina controle com cuidado, vida com morte.

O campo é o espaço da exceção porque, no momento da emergência, ele é designado como um espaço extraterritorial. Aqui, a soberania excede as fronteiras nacionais, estendendo a suspensão da lei a corpos que estão fora do corpo político. Mas a extraterritorialidade é mais do que isso. Como ficou evidente em Guantánamo, trata-se de uma zona "sem lei", criada por meio do caráter duplo da soberania: os Estados Unidos alegam que Cuba detém a "soberania final", mas que os Estados Unidos têm "jurisdição e controle totais". Guantánamo é, assim, um espaço sobredeterminado, que pode ser entendido segundo o conceito orwelliano de "duplo-pensar": aceitar duas crenças contraditórias simultaneamente. Os Estados Unidos são o poder soberano em Guantánamo, e, desde 1991, podem ali manter estrangeiros que, por estarem detidos fora do território americano, não são protegidos pela constituição norte-americana.

Na zona sem lei do campo, os sujeitos são tratados como "vida nua". Em seu envolvimento recente com a obra de Agamben, Butler96 repara que o campo não é simplesmente um Estado de exceção, mas também um estado de dessubjetivação. É aqui que "o próprio status ontológico dos sujeitos é suspenso quando o estado de emergência é invocado". Essa é a "vida nua" - "não é viver como os animais políticos devem viver, em comunidade e unidos por leis, mas tampouco a morte, e, assim, é estar fora da condição constitutiva do Estado de direito. É nesse sentido que o campo excede o biopoder, pois o sujeito biopolítico se torna vida nua e a soberania se torna o que Mbembe chama de "necropolítica", a demarcação daqueles sujeitos cuja vida e morte não têm importância.

Mas o exercício da soberania no campo não é simplesmente a suspensão do Estado de direito. O campo é o espaço paradoxal onde a lei é suspensa pelo guardião da lei e em nome da paz, da ordem e do bem maior. O campo é também, nas palavras de Malkki, um "instrumento de cuidado e controle", no qual o primeiro depende da compaixão excepcional do soberano:" as atrocidades são cometidas ou não dependendo não da lei, mas da civilidade e do senso ético da polícia que age, temporariamente, como soberano". Lembram-se de Abu Ghraib?

Há muitas analogias possíveis entre o espaço biopolítico do campo e a cidade medieval. A construção de espaços "sem lei" é um desses pontos de convergência. Como fica claro na atual guerra no Iraque, os aparatos de segurança, assim como os militares, são crescentemente privados, com mercenários assumindo a responsabilidade pela proteção de funcionários do governo norte-americano, pelos interrogatórios de prisioneiros e pela administração da infraestrutura do petróleo. Esses mercenários não estão sujeitos a nenhuma jurisdição legal, pois operam a partir de um status excepcional. Isso lembra muito o papel desempenhado por grupos de mercenários frequentemente formados segundo critérios étnicos ou raciais para ajudar a pacificar e controlar as cidades islâmicas no início da Idade Média, tanto nas cidades-fortaleza, como nos centros de poder dos califas ou em cidades ocupadas. Tais tendências exigem, mais uma vez, que o poder territorializado seja entendido para além dos conceitos de segregação, cercamento e quarentena, e que seja entendido também por meio do conceito de excepcionalidade.

Porém, tais discussões a respeito do campo não exigem um retorno à cidade medieval. Foucault e Agamben bastam como fontes de conceitos analíticos. O que a analogia com a cidade medieval acrescenta, então, à análise do campo? Aqui, vale a pena voltarmos a um debate bastante específico a respeito de um tipo de campo: o campo de refugiados. Recentemente, Agier levantou a possibilidade da cidade-campo. Ele afirma que, enquanto o campo de refugiados é uma versão defeituosa da forma urbana, como eram os distritos do apartheid, é possível perceber algumas dimensões cruciais da cidade no campo: no sentido relacional de urbs e no sentido político da pólis. Em particular, ele está interessado nas formas pelas quais tabuleiros de xadrez étnicos são montados nos campos. Sua linguagem, segundo a qual no campo as nacionalidades se tornam etnicidades, ecoa não apenas medievalistas como Pirenne, mas também a escola de sociologia urbana de Chicago: a cidade como um mosaico de etnonacionalidades. Contra Agier, Malkki afirma que a questão da cidadania urbana não pode ser tão facilmente levantada em relação ao campo de refugiados. Concordando com Agamben, ela vê o campo como o espaço da vida nua, um espaço biopolítico absoluto, que contrasta radicalmente com o cosmopolitismo da cidade. Em seu quadro teórico, o campo é a não-cidade.

O debate a respeito da relação entre cidade e campo traz à mente o "bairro étnico" do urbanismo medieval tanto no Oriente como no Ocidente. Na cidade árabe - islâmica da Idade Média, grupos étnicos ou religiosos eram confinados a áreas e bairros específicos. A essas populações eram frequentemente atribuídas funções ou profissões urbanas específicas. O movimento de entrada e saída do bairro étnico era por vezes controlado em épocas de crise ou quando se instalava regimes opressores. Os bairros judeus de muitas das cidades medievais da Europa e do Oriente Médio parecem ter surgido em resposta ao desejo de excluir os judeus de algumas partes a vida urbana e das trocas econômicas, mas ao mesmo tempo lhes permitia certa flexibilidade econômica. Os bairros étnicos, em outras palavras, produziam cidadãos de segunda classe.

O problema da segregação na cidade árabe - islâmica medieval exige um pouco mais de reflexão. A maioria das cidades do mundo árabe da Idade Média exibiam alto grau de segregação étnica, racial, religiosa ou tribal. Seja em Túnis no século XVI, seja em Aleppo no século XVII, não se pode negar a importância do bairro étnico. Mas seria um equívoco chamar todos esses bairros de guetos, como o gueto original de Veneza ou tomando o significado moderno da palavra. Realmente, pelo menos no Oriente Médio, alguns grupos étnicos e religiosos não eram obrigados a viver nesses bairros. Foi apenas quando o Império Otomano assumiu o controle da maioria das cidades do mundo árabe que essa segregação passou a ser induzida pelo Estado. A aplicação desse novo padrão não surgiu como resposta ao medo da violência étnica, pois tais comunidades de minorias mantinham boas relações sociais com outros grupos. De fato, parece que essas comunidades segregadas eram, assim como o campo de refugiados moderno, um instrumento do aparato estatal para gerir e controlar populações étnicas. Ali, as minorias étnicas encontravam um grau de autonomia religiosa e social de que de outra forma não gozariam.

Se o bairro étnico pode ser considerado uma forma de vida, com as "invenções cotidianas" e o "bricolage de novas identidades" evidentes na cidade-campo de Agier, também pode ser considerado um mecanismo de controle. Assim como o campo de hoje, o bairro étnico da cidade medieval era um Estado de exceção, no qual a cidadania urbana era suspensa por meio do caráter flexível do poder soberano. O bairro étnico como espaço de exceção não estava fora da ordem jurídica da cidade; não era a ausência de lei que precede a lei. Ao contrário, por meio de seu status excepcional, era constitutivo do próprio conceito de cidadania urbana - assim como, nas cidades-estado da Grécia e de Roma, a noção de "homem livre" como cidadão pleno era constituída pela exclusão das mulheres e dos escravos. De forma semelhante, o campo é constitutivo da cidade de hoje.

Vale levar essa idéia um passo adiante. Pode-se dizer que o campo constitui a cidade na forma de um "exterior constitutivo". Apesar de Agier e Malkki discordarem seriamente a respeito de se o campo de refugiados pode se transformar em cidade, ambos concebem a cidade como uma norma oposta ao campo. Para Agier, a cidade pode ser entendida, segundo a concepção da escola de Chicago, como uma ecologia de etnicidades, ou, segundo o mapeamento de Certau, uma ecologia de práticas cotidianas que desestabilizam as estruturas de poder. Para Malkki, a cidade é um espaço cosmopolita, um nódulo da ordem pós-nacional de Appadurai110, que contrasta com o etnonacionalismo purificado e enrijecido do campo. Tanto Agier como Malkki, portanto, propõem uma visão da cidade que lembra a afirmação de Pirenne:"o ar da cidade liberta". O bairro étnico medieval indica que a cidade jamais foi "livre" - ou, melhor, que suas liberdades resultam da limitação e restrição do Outro. Nesse sentido, tais espaços de exceção são um "interior constitutivo" das cidades. São as formas de exepcionalismo que constituem as estruturas da normalidade. Não repousam na periferia extraterritorial do espaço da cidade; são as próprias formas de estado, subjetividade e espaço que produzem a cidade. Para falar na linguagem de nossos tempos, a cidade e o campo estão inevitavelmente ligados porque "nossas" liberdades pressupõem a falta de liberdade "deles"; porque após certo tempo é impossível policiar as fronteiras entre a exceção e a generalização, entre o etnonacionalismo e o cosmopolitismo, entre o soldado em Abu Ghraib e o agente penitenciário em West Virginia, entre a atrocidade e a necessidade.


MODERNIDADE MEDIEVAL: COMENTÁRIO FINAL

Existem muitas ferramentas conceituais diferentes para a discussão a respeito das cidades contemporâneas e das formas de cidadania urbana. Nossos críticos talvez perguntem: por que não simplesmente falar das exclusões e segmentações das cidades contemporâneas? Afinal, não se trata de mapear os contornos da cidade neoliberal e, portanto, isso não exige uma explicação da produção neoliberal do espaço? Sim, responderíamos, mas esses projetos já foram perseguidos por vários e valorosos estudiosos. O que persiste na análise do neoliberalismo, na linguagem que nós mesmos usamos em outras publicações, é um senso de novidade: um novo modo de produção, uma nova produção do espaço, novas formas de disciplina e controle. Nosso uso do "medieval" tem como objetivo colocar em questão essa teleologia, a marcha inevitável através de fases históricas e modos de produção e regulação social. Nosso quadro teórico talvez cause desconforto aos materialistas históricos; afinal, não estamos separando o "medieval" do modo de produção "feudal"? Não seria uma trivialização da produção histórica do espaço? Em resposta a tais receios, gostaríamos de fazer as observações a seguir.

Em primeiro lugar, o uso do "medieval" como categoria analítica possibilita uma quebra em relação às compreensões teleológicas da modernidade. Se o "feudalismo" é um sistema de relações políticas, econômicas e sociais, e se o "urbanismo medieval" é um sistema de ordenação do espaço, então a expressão aparentemente contraditória "modernidade medieval" indica como o medieval se esconde no coração do moderno, como o feudalismo existe no interior do capitalismo. Essa é a "repetição infernal" que permite a Benjamin aniquilar o mito do progresso histórico. Tais críticas à teleologia também forçam a reconsideração da própria categoria "moderno". Os exemplos de cidadania que discutimos indicam como a cidade moderna funciona segundo uma ordenação medieval do espaço. Também indicam que essas formações espaciais de tipo medieval expressam identidades e aspirações modernas, tais como o direito à produção do espaço, ou a promessa de democracia e prosperidade econômica. Como notaram Comaroff e Comaroff a respeito de regimes de dominação religiosa: eles incorporam "uma forma potente de compressão de tempo e espaço", "a habilidade de cumprir suas promessas aqui e agora [...] como um legítimo Deus global". O oximoro "modernidade medieval" revela, assim, os paradoxos inerentes do moderno: feudos de democracia, o imediatismo do fundamentalismo religioso, a simultaneidade de guerra e humanitarismo. Assim como o termo "modernidades islâmicas, ele ultrapassa a diversidade geopolítica que conceitos tais como modernidade "alternativa" ou "múltiplas" implicam. Neste caso, a modernidade não assume simplesmente formas diferentes em diferentes lugares; ela é um projeto reconhecidamente fraturado, dividido e contraditório.

Em segundo lugar, essa complicação do conceito de moderno é uma prestação de contas com a história das origens, com a narrativa de uma modernidade original gestada no local originário da cidade. Aqui vale a pena citar um trecho longo de um texto de Robert Stein a respeito da função crítica dos estudos medievais:

    Os humanistas do século XV passaram a referir-se à sua própria época como Renascimento e, como consequência, inventaram a Idade Média para demarcar o período entre eles mesmos e a Antiguidade clássica que pretendiam imitar e da qual desejavam se apropriar. O termo "renascimento" é assim um ponto de origem: surge daquele momento definitivamente moderno da autoconsciência histórica quando a Europa ocidental começa a narrar sua própria história. Esse momento traz à luz uma noção de modernidade e, com ela, simultaneamente, uma narrativa de sua história. Sem modernidade, não há historicidade. Ou, para colocar de outra forma, a própria História é desde o começo sempre e apenas a narrativa do surgimento da modernidade. A Idade Média, localizada entre dois momentos da narrativa do moderno, tem uma função meramente proteladora [...] a Idade Média é a parte da história que "não precisa" ser contada [...]. Não quero dizer com isso que a periodização histórica seja arbitrária no sentido de ser vazia de significado; ao contrário, quero enfatizar que o sentido é produzido, e não dado, e a periodização é um determinante estrutural precisamente porque ela também é produzida - e por meio de uma narrativa [...]. Um limite que demarca um período é um lugar onde o sentido é produzido.

Uma vez que a teoria urbana se insere nesse "limite de período", torna-se possível levantar questões a respeito do passado e do futuro, mas sem pressupostos de progresso ou regresso. Se a noção de "modernidade medieval" coloca a "repetição infernal" de Benjamin no lugar do mito do progresso histórico, ela também sugere a dinâmica antecipatória da cidade. Como podemos tornar mais complexa a noção de tempo linear que está ligada à antecipação? Como podemos começar a falar das formas de modernidade nas quais o futuro é pior do que o passado, quando em muitas regiões do mundo a ideia de progresso se esvaziou? É certo que uma promessa e uma antecipação ainda persistem, mas não necessariamente a de progresso, de um futuro melhor do que o passado. Ao nos voltarmos para o urbanismo medieval, procuramos sugerir que as formas modernas de cidadania nacional podem estar dando lugar à territorialização fractal e estilhaçada da cidadania típica dos enclaves medievais. Estaria esse medievalismo, por sua vez, dando lugar ao império? Não é nossa intenção construir uma teleologia reversa, em que uma fase histórica dá lugar a outra. Antes, essas modalidades de tempo e espaço-o nacionalismo moderno, os enclaves medievais e a brutalidade imperial - coexistem de forma não linear, tornando complexa a questão de progresso e atraso, de moderno e não-moderno. No entanto, permanece o desafio: se fôssemos antecipar, o que anteciparíamos? Alguns historiadores julgam que esta não é apenas a era do império, mas trata-se do lento esgotamento do império, estranhamente semelhante aos espetáculos de extermínio, aos excessos ritualísticos e às fronteiras violentas de um Império Romano moribundo. Se essa comparação é convincente, o que se pode antecipar a respeito do fim do império? Seria o renascimento das cidades e da cidadania na Idade Média que se seguiu à morte de Roma? Ou seria um retorno às alturas do império, às cidades platônicas e aristotélicas dos "homens livres"? Em ambos os cenários, as liberdades da cidadania urbana estão emaranhadas com as não-liberdades da escravidão, da servidão, da hierarquia e da exclusão. Talvez a democracia tenha sido sempre ou imperial ou medieval, forjada na glória da Roma imperial ou no pragmatismo das sociedades feudais.

Em terceiro lugar, a referência explícita à cidade medieval permite um confronto com a alteridade. Em diversas disciplinas, o "medieval" continua a ser tratado como o "outro". É o campo dos medievalistas, e não dos teóricos críticos. É o campo dos historiadores e não dos geógrafos ou urbanistas. Não é apenas uma questão de fronteiras disciplinares e especializações. É também a persistência de dois dualismos de tempo e espaço complicadores: a separação de história e geografia; e uma alteridade de tempo que é também alteridade do espaço. O medieval é muitas vezes visto como pré-moderno, anacrônico, como a Idade das Trevas. Nosso termo "modernidade medieval" é, nesse sentido, uma contribuição modesta aos diversos esforços que indicam o caráter moderno da cidade medieval e que questiona inevitavelmente a superioridade de "nossa" modernidade.

Mas o termo "medieval" também está sendo ressuscitado para indicar o fim do moderno e o retorno do Outro, do bárbaro. Em uma era de império, a alteridade temporal do medieval está sendo reescrita na forma de uma geografia da alteridade. Esse é o uso de "medieval" na literatura de relações internacionais, por aqueles que lamentam o fim da ordem mundial moderna, como Kobrin, preocupados com o fato de que "a era moderna talvez seja uma janela prestes a fechar", de que o futuro é "neomedieval". Assim, Robin Wright, correspondente internacional do Washington Post, pergunta: "A modernidade será pega de surpresa pelo Iraque?"118. Para ela, o momento atual é a fase final da modernização, que está levando mais tempo para se completar do que o esperado, sendo o Oriente Médio o obstáculo final que a modernidade precisa enfrentar o último espaço que resistiu à onda de empoderamento e modernidade que varreu o restante do mundo. Seu discurso revela como o processo civilizatório enxerga seu inimigo não no passado histórico, mas nos espaços de exceção identificados com o passado selvagem, como fica claro nas expressões "bárbaros árabes" e "velha Europa", correntes entre os norte-americanos. Nesse sentido, o moderno é sempre medieval, sempre pré-moderno. Nesse sentido, o tempo é sempre articulado no espaço.


Um comentário final. Se este artigo é uma tentativa de complicar a teleologia do moderno, é também uma tentativa de complicar o conceito normativo de "cidade". O medieval se esconde no coração do moderno, assim como o campo se esconde no coração da cidade. Apesar de termos definido três categorias, elas não são excludentes; elas se sobrepõem - por exemplo, o enclave cercado é muitas vezes produzido por meio de regulamentações informais. Todas as três formações espaciais são expressões do que pode ser considerado a "modernidade do enclave". Porém, mais importante do que isso: são todas Estado de exceção. Se a noção de campo de Agamben não pode ser considerada uma noção espacial, mas um diagrama do poder (como o panóptico para Foucault), então os diversos espaços discutidos neste artigo são marcados por essa lógica da soberania. E essa lógica é medieval. Ela nos força a pensar em um urbanismo pós-cidade, no qual o paradigma não é a cidade - nem mesmo a cidade neoliberal excludente -, mas o Estado de exceção. 

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